Ao amor que não nasceu

Ao amor que não nasceu

Para ler ao som de:

https://youtu.be/SO9Lj0T93Xk

Acho que eu o acostumei mal. Pra ser bem sincera, a verdade é que eu não consigo olhar pra trás sem me culpar por ter dado tanto espaço, aceitado tanto ser pano de chão.

Era sempre assim: eu ia vê-lo toda feliz e repleta de esperanças de uma tarde bonita e cheia de aventuras, daquelas corriqueiras e pequenas, que só mesmo sente o amor na parede do estômago consegue sentir. Cada toque das minhas mãos nas dele, me causava arrepios, e era preciso um esforço extremo para disfarçar o riso de otária que ficava em minha cara só por ele estar perto.

Eu chegava na esperança de saltar na vida com ele. Todo santo dia eu ia com essa esperança. Mas ao invés de me convidar para colocar um para-quedas e subir no voo agarrada em suas mãos, ele me colocava para carregar tralhas, pedia que eu saísse ajuntando os trapos e as roupas que ele iria jogar no chão quando estivesse no alto, sentindo a adrenalina rasgar suas entranhas. E eu ia, dia após dia. Esperá-lo, catar suas bugigangas e recebê-lo sorrindo quando ele chegava todo esbaforido e cansado e me entregava o resto de tralhas que carregava. E eu segurava tudo, dia após dia, porque eu acreditava que em algum momento, tocado pela minha veneração, ele me chamaria, seguraria minha mão e me levaria pra sorrir a vida com ele,.saltar também naquela imensidão de possibilidades que era o mundo. Mas ele nunca chamava, e quanto mais eu lhe cuidava, menos ele notava e mais peso em mim colocava.

Isso durou um ano. Até que um dia ele subiu no mais alto prédio pra fazer mais uma de suas aventuras e começou jogar coisas lá do alto para que eu pegasse. Dessa vez não sorri, nem saí feito uma badeca para lhe satisfazer as vontades. Virei as costas e fui procurar meu rumo.

Se deu tudo certo ou não, se suas coisas ficaram jogadas no chão ou não, se a corda o segurou ou arrebentou, não sei. Não é mais problema meu. Resolvi deixar no chão, junto com suas coisas, o peso morto do amor que nunca nasceu, e desde então meu amor encontrou outros portos e voos, porque dessa vez eu não espero, eu mesma o levo para saltar.

Os amores que não acontecem nos abrem portas. No dia que abandonei aquele, a porta do respeito a mim se abriu.

 

|Foto: Carol Costa|