Aborto de mim


O que eu queria era aparar aquele sangue que escorria entre as minhas pernas e fazer aquela minha versão feto voltar de onde havia saído, mas não conseguia. Atônita e num misto de desespero e surpresa, vi aquele líquido vermelho molhar toda a minha roupa e levar consigo todo o resto que havia de mim em mim. Não houve olhos pro céu em prece. Não havia mais pelo que pedir. Não houve revolta, nem raiva duradoura. Só o lamento. Em um flash que deve ter durado alguns segundos revivi mentalmente todo aquele processo de preparação. Os hábitos adquiridos, as músicas aprendidas, a comida e a falta de comida na medida certa, ou quase certa, não sei. O mundo e aquela cor desconhecida. O céu do novo. O inferno do enjoo. Era tudo isso que morria ali, naquele sangue escorrendo em mim. E de todos os abortos de mim mesma, aquele era o mais ridículo e estranho, e ainda assim, quem sabe, talvez, o mais doloroso.

Eu lá sabia o que viria ser aquele feto. Não sabia. Poderia ser pássaro que ama verão longínquo. Poderia ser árvore que fixa raízes. Não sabia mesmo o que crescia em mim de mim. Só sabia que queria que continuasse crescendo ali, me crescendo, ainda que para manter-me viva eu precisasse de uma dieta forçada e reforçada. Por mais que os efeitos colaterais fossem queimação e insonia. Cólica, pontadas, calafrios, medo e toda sorte de coisas ruins. Eu queria aquele feto de mim, da vida, em mim.
Enquanto observava as gotas de sangue escorrer, esse turbilhão de pensamentos passou pela minha mente, e dessa vez não me esforcei pra ver o tal lado bom, que sabia eu, não existia. Me permiti me perder através de cada gota que descia, me permiti morrer através daquele sangue que secava em minhas pernas. Talvez se eu não houvesse pulado. Talvez se eu não tivesse dançado. Talvez isso, talvez aquilo outro. Uma chuva de talvez caiu sobre minha cabeça e não corri para não me molhar,
Sem final triste ou feliz. Só um aborto de mim.
Foi nesse dia que a esperança morreu e que entendi que não é preciso que seja grande uma pedra para nos fazer cair.
The Blowers Daughter – Scala & Kolacny Brothers

Camila Lourenço