Eu quero ser Miguel de Cervantes

“Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.”

|Sophia de Mello Breyner Andresen|

 

Me chame pra dar um abraço em um desconhecido, a tirar um vagueante da rua – dos que andam sob duas pernas, ou quatro.

Me chame pra um sonho impossível, pra um sorvete em um dia de inverno. Pra gritar pro mundo e pelo mundo, numa tarde qualquer, na Marginal que corta a cidade.

Coloque o corpo pra fora da janela comigo.

Me chame para o lugar mais alto, da montanha mais alta da cidade. Para o último andar do prédio que mais chega perto do céu. Só pra ver o pôr-do-sol.

Me convide pra ser Dom Quixote.

Segure minhas mãos quando for lutar contra os moinhos de ventos e chorar por apesar dos esforços, o mundo continuar igual.

Eu quero ver cinema na segunda e usar as minhas melhores roupas em dias comuns. Comer pipoca numa quarta vendo filme pela tela do computador. E sentar para tomar um café em uma padaria de paredes de vidro, só pra ver a rua passar, mesmo que ruas não passem, mesmo que a vista não seja como a do último livro londrino que lemos.

Eu quero o lugar não comum. Morrer pelas causas que ninguém mais acredita.

Ser um canto para os desabrigados, comer com um cão, dormir com um gato. Chorar pela derrota que já era nocaute antes mesmo da luta começar.

Eu quero beber até cantar, dançar até ficar descalça e rir como se fosse a última risada. Rir alto, desordenadamente. Ser politicamente incorreta, correta. O escambal.

O genérico só me seduz nas prateleiras das farmácias. Na vida, o expoente me atrai.

Acreditar como quando tinha sete anos, sorrir com a placidez dos 100.

Pelas causas ganhas há um mundo inteiro a jogar. Pelas perdidas, apenas o meu e o seu braço, se você topar.

Eu vim pra trocar do dicionário a palavra “impossível” pela frase “falta de tentativa”.

Porque a resignação só me coube nos pés quando fixei os olhos no teto para o mundo deixar de ser carrossel.

Eu quero ser Miguel de Cervantes.