Para ler ao som de:
Eu sou um relógio quebrado. Um relógio atrasado querendo sempre correr contra o tempo, antecipar as horas e etiquetar de urgente alguns retratos dos anos.
Meu passo está sempre atrasado ou antecipado demais. Eu amo quando não deveria amar, e desgosto quando o presente se faz gostar. O encanto que me vai nos olhos se esvai pelas mãos se o ponteiro do relógio da vida insiste em se atrasar com o meu. Eu engulo pessoas, vomito ansiedades e durmo na solidão.
Eu sou um relógio quebrado, que aprendeu ser tic-tac entre o espaço do tempo do que quero e do que é. Um contador de horas que para confiar no tempo, precisou desaprender contar.
Eu ando na velocidade da rotação do planeta, e respiro na apatia dos que odeiam esperar as voltas que o mundo dá, mas que sabem que para o compasso da vida acertar a valsa, não há outra solução.
Se eu quero agora, só quererão quando a pressa do torpor se fizer adormecer. Se a fome bate a porta uma hora da tarde, a comida só chega as três. Se eu quero pra ontem, chegam depois de amanhã. Se é pra agora, o tempo sempre espera adormecer a pressa da paixão.
Eu sou um relógio quebrado pendurado na parede do tempo, que aprendeu confiar nos gostos que a fração dos segundos não controlados dão para a estação.
Sou um relógio quebrado que quer tudo no compasso do desejo. mas que já desistiu de conter ou antecipar as horas, ou o tempo, e agora só murmura uma prece para a hora da vida sincronizar-se com o desejo do meu ponteiro quebrado.
Eu sou um relógio que precisou desaprender contar para aprender a confiar.