Maria

Maria

Pra ler ao som de:

 

Os adultos também não se parecem adultos por dentro.

Por fora são grandes e desatenciosos e sempre sabem o que estão fazendo.

Por dentro, eles se parecem com o que foram. Com o que eram aos 7 anos de idade.

Neil Gaiman

 

Maria tinha 77 anos. Dos 77, 75 conviveu  com o medo de altura, até que Josué, seu neto, a convenceu entrar em um avião com destino a São José dos Campos. Continuou com medo após a viagem, mas do alto da sua idade, descobriu que havia como o controlar, o medo.

Fora isso, Maria tinha algumas manias e umas tantas mágoas. Adorava o escuro, fechava todas as frestas para conseguir dormir, mas tinha pavor de morcego, principal morador da sua paixão. Não gostava de pão de queijo amanhecido, cenoura cozida, meia de pé e água gelada. Também não gostava de reler cartas, mas amava escrever e escrevê-las. Principalmente agora, que mudara para o outro lado da rua um velho senhor que estava balançando seu já velho e viúvo coração.

Quando criança, Maria sonhara em ser escritora, mas o casamento arranjado aos 14 anos, e os 13 filhos que tivera nos anos subsequentes, engavetou seu sonho de palavras e a presenteou com o dom de fiar e cuidar. Quando Emanoel, seu marido, morreu 17 anos após o sim, Maria teve que escrever o livro da vida fiando tapetes para conseguir manter a família.

Hoje, 47 anos após a morte do seu marido, o vizinho do outro lado inspirou Maria a assoprar seu sonho juvenil, e ela  começou escrever-lhe cartas sem nunca entregar. Escrevia poesia sobre o jardim que ele regava, sobre o suéter que ele usava, sobre o suspensório que ele ainda mantinha. Maria escrevia pra passar o tempo e preencher a vida. No entanto, quando seus netos chegavam para a visita semanal, Maria escondia qualquer resquício que pudesse denunciar seu crime. Contava histórias da Cuca, do bicho papão e do Noel encantado. Contava histórias até mesmo de um tal Príncipe da barba rala (apelido carinhoso que ela chamava seu vizinho nas cartas).

Maria parecia tão dona de si e senhora da sabedoria. Dava conselhos para a família inteira, era o socorro do mundo quando o chão desabava. Para a família, Maria era a certeza, para Maria, ela era só um amontoado de histórias, cobertas por alguns medos bobos e um frio na barriga quando se deparava com o desconhecido, ou com o “príncipe da barba rala”.

Um dia, porém, Maria foi colocada a prova. O “barba rala” tocou-lhe a campainha para perguntar se ela ainda vendia tapetes, conforme havia dito a vizinhança. Maria, deu um sorriso daqueles típicos de avós, e disse que há 10 anos não produzia mais tapetes. Enquanto olhava o protagonista de todos os seus últimos contos e encantos, Maria foi adolescente por alguns segundos. Pensou em ser mais cordial e chama-lo para entrar. Pensou em perguntar o que ele usava para cuidar do jardim que era tão bonito (na esperança de travar a partir disso um bom papo). Mas ao invés disso, respondeu simpática a pergunta e disse até logo quando ele, após a resposta, agradeceu e partiu.

Na madrugada daquela noite, Maria partiu enquanto escrevia um conto de amor.

No outro dia, seu neto mais novo a encontrou debruçada na escrivaninha, em cima de um papel que em letras rasuradas, dizia:

Se eu tivesse mais tempo, Príncipe Barba Rala, eu lhe contaria sobre meu amor. E te diria que da vida, eu só tenho espaços vazios cultivados por aqueles que nada sabem. 

Se eu tivesse mais tempo, ou talvez, coragem, eu lhe diria, meu caro príncipe, que por dentro ainda sou tão criança quanto na época em que eu acreditava que uma carta, poderia mudar uma vida.”