Pra ler ao som de:
“A paixão é uma forma socialmente aceitável de insanidade.”
Spike Jonze
O jeito que ele me olhava nos olhos, me balançava as pernas. Era tão profundo e me despia de uma maneira, que eu mergulhava em uma imensidão de coisas. Eu nadava em cada traço daquela retina e sentia o peito inflar. E naquele breve espaço de segundo, ele era o cara mais lindo da face da terra. Tudo nele era demasiadamente intenso. A risada sacudia o peito até de quem passava do outro lado da avenida, o bico de mágoa tremia feito de criança, e o abraço era mais fraterno e terno que de mãe.
Com ele, até meu riso mais discreto era gargalhada. Ele tinha manias estranhas de contar passos e picotar papel toalha. E observando suas manias, eu inventei uma melodia que combinava com o compasso do espaço que ficava a cada dois números dos passos por ele contados. E os papéis por ele picotado, agora comigo se transformavam em mosaico colorido de tinta guache. Saíamos combinados de comprar um par de chinelos e levar somente um pra casa, pra descobrir se o outro iria aparecer com um pedaço de borracha com ao menos o mesmo número ou uma cor que sincronizasse com o do outro. E combinava. Se eu chegava com o amarelo, ele chegava com o azul, que juntos, se tornariam o verde, sua cor favorita. Se eu levava um branco de bolinhas pretas, ele aparecia com um vermelho que havia um laço encontrado sabe-se lá de onde, que ornava exatamente com o tom retrô do par que o esperava no meu pé.
Nós combinávamos em tudo, até nas diferenças. Ele não acreditava em Deus. Eu morreria pela minha fé. E mesmo sem crer em Deus, ele admitia pela ausência de falta de milagres em mim que a fé era uma criatura que realmente independia do seu Criador.
Até ele aparecer, eu jogava roupas no chão do quarto, para que enquanto eu arrumasse a bagunça que eu mesma fiz, as respostas da minha vida aparecessem. Depois dele, se as roupas iam parar no chão depois dos nossos amassos apertados e de fôlegos entrecortados, e eu já não arrumava minha bagunça procurando encontrar respostas. A bagunça era a resposta.
E eu poderia até dizer que pelo som alto da sua risada, pelo arroto escroto no meio da multidão ou que talvez até mesmo pelas bombas de puns embaixo do cobertor fizeram com que eu me desencantasse e partisse a procura de algum outro riso mais limpo. Mas o defeito mais escrachado, ou a ironia mais indisfarçada, foi o elo que me uniu ainda mais àquele peito que por ser tão cheio de defeitos, complementava o meu.
E eu o amei. O amei com tudo que pude, com meus defeitos mais gritantes e minhas qualidades mais amenas. Amei até aquele dia fatídico. Até o ver partir para um trabalho bobo a 20km de distância, do qual, por causa de uma curva mal feita, ele nunca mais retornou.