Esse texto nasceu porque um leitor e amigo, leu “Maria”.
Antes de ler José, leia Maria para entender a história.
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José, senhor que não mais se olhava para o espelho, já passara dos 80. Destes, metade foi motivado pelo amor, e a outra metade, motivada a esquecê-lo (não necessariamente nesta ordem).
Já fora Zé da Esquina, Zé da Banca e Zé da Sapataria. Na maioria do tempo José era mesmo o Zé Ninguém. José sempre fora Zé dos outros… mas nunca Zé de si mesmo.
Era um Zé de café amargo, amenizado com meia colher de doce de leite e de sonhos bobos, que os fazia rir sem querer junto a companhia de sua solidão.
José nunca se casara. Até os 20, apreciara o casamento dos pais, que exemplo lhe era. Os bons dias ao acordar, as mãos dadas antes do trabalho, os beijos ao encontrar da volta, e os carinhos à caminho do dormir, lhe eram a cor do sorrir. Mas seu sorrir tinha que andar com as próprias pernas, e assim, dos 20 aos 60 passou a procurar sua esposa em todos os cantos. Nos cantos de sua idade, nos cantos do seu relógio, no canto do amarelo, mas acabou se tornando o próprio canto empoeirado.
Dizia para os outros que seu amor deveria aparecer quando estivesse de olhos fechados, de costas e dormindo (talvez pra vê-lo nascer devagar no horizonte das pálpebras, e esbarrar no virar ainda tonto da cama). Mas era mentira de coração dolorido. Queria mesmo é que aparecesse ali, naqueles todos segundos que não cansavam de passar.
Dos 60 ao fim, José parara de procurar. As cores perderam o perfume, e o amor nada mais era que 4 letras maldosamente arranjadas para a tristeza de seu nunca. Fora desta dor que José guardara sua riqueza. Trabalhador esforçado, entre tantos Zés, nunca gastara com muito. Cafés, doce de leite, e aqueles sonhos, ainda assim este último saía de graça, pagando apenas o preço do dormir (principalmente de olhos abertos). Cansado pela falta do cheiro de Arco-Íris, José resolvera deixar tudo pra trás. Juntou todo seu ouro, pegou seu cavalo o qual custara R$ 34,90 o bilhete, e com seu baú esfarrapado de duas mudas de roupa nas costas, se foi, rumo ao seu novo castelo, o qual achara numa rara ocasião anunciada no jornal, a fim de tomar seu reinado.
Era uma casa simples, com varanda humilde que cantava o vento do dia. Na verdade não importava, pois José só queria passar o resto de seus restos a se conhecer. E foi neste raro fio de luz que viu um dia, pela fina fresta da janela, ela passar. Com o corpo baixo pela também idade, ela tinha algo que encantava o seu não saber. José viu nela flores… todas as flores, todos os cheiros, todos os gostos, mas a cor, era violeta, e nada mais. Resolveu então, envergonhado de si mesmo, plantar um jardim, logo ali… no canto.
Zelava deste jardim como se zelasse dela. Conversava com ele, cantava, passava as rugas de sua pele pelo veludo das flores, como se acarinhasse a alma daquela que em frente habitava. Pouco antes dela chegar, sempre ao mesmo horário, José corria pra dentro, onde tomava um bom banho, passava um perfume de azul, e se enfeitava com as roupas recém compradas para impressioná-la. Um suéter e um suspensório, transpassados pela esperança de um renovado amor… 4 letras bondosamente arranjadas para a felicidade de seu talvez. Corria então, perfumado e arrumado de céu, para regar o jardim ao vê-la passar. E ela passava… e José era agora o Zé Dela.
Corria para dentro, seu dentro, a escrever poesias infindáveis de amor. Papéis e mais papéis namoravam as tintas de José, que corriam em velocidade, como se contra todo seu tempo, a desfrutar-se enfim o sempre. Ao final de cada som, José dobrava a folha e colocava em um envelope, esperando a coragem do entreolhar.
Mas foi bem em meio à novas dores que esta coragem apareceu. Percebendo que seu corpo lhe cobrava um fim, José resolvera não ir sem o que nunca tivera. Pegou todas as cartas, colocou em seu bolso, e na hora de sempre, atravessou a rua, como se atravessasse seu último e maior deserto, tocandotrêmulo a campainha.
Ao sair da flor pela porta, se entreolharam pela primeira vez. Ela sorriu, e quando assim o fez, o tempo de José parou, como se contemplando toda uma eternidade.Naqueles poucos segundos, não existia o começo nem o fim… apenas algumas palavras tolas sobre alguns tapetes, que José ouvira falar na vizinhança, mas que sabia que há tempos não mais produzia. Não sabia José o que acontecia… sabia apenas que ela já retornava, em lentos passos para o interior de seu lar, enquanto as poesias riam no bolso dele pelo seu embaraço, como ao de uma criança tentando o primeiro beijo. E era assim que José se sentira ao retornar pra casa, na alegria dos planos de amanhã.Atravessou a rua pensando em convidá-la a um café com doce de leite, contando sobre o porquê de seu jardim ser tão lindo. Explicaria que aquele jardim era a beleza dela… nele. E que por isso as flores sempre cantavam em tons violeta.
Sorriu José por um dia inteiro, como nunca havia acontecido, e dormiu José sonhando com o amanhã, talvez cansado de tanto sonhar com o ontem. Mas o amanhã de José nunca chegou. Morreu José naquela noite, com o gosto de amanhã misturado com o de flor.
Seria suficiente a estória se assim terminasse, mas confesso que assim a estória não terminou. Sabe-se que naquela noite, aquela senhora buscou José em sua cama… ele estava com os olhos fechados, de costas e dormindo, como planejara. Enquanto isso, José a buscava junto a uma escrivaninha… ela estava adormecida sobre um conto de amor.
Não importa como isso aconteceu… entre José e ela não mais existia o tempo nem o espaço. Já foram a lua e o sol, as areias e o mar, as estrelas e o céu… já foram, enfim, todas as possibilidades na imaginação daqueles que ainda sonham. Sonho este que hoje cansou-se de esperar..
E assim, José e Maria resolveram deixar de ser duas estórias inventadas, para se eternizarem no real amor de um só papel.
Leopoldo R.